27 de fev. de 2008

Febre



Ela havia despertado naquele mesmo instante, estava ainda de olhos fechados. Acordara cheia, pesada, insustentavelmente carregada de tudo. Durante a noite teve o sono entrecortado, acordava sobressaltada de tempos em tempos. Os lençóis, o frio, a dor. A loucura do sonho-pesadelo indefinido apoderara-se dela. Apesar de saber-se ali, não conseguia sentir-se. Delírio. Estava cheia de tudo, especialmente cheia daquele vazio pesado.
Sentia-se cansada depois do sono terrível da noite. Via a luz sem abrir os olhos. O dia era quente, o sol estava alto. Dobrou uma das pernas arrastando a ponta do pé no colchão. Não estava interessada em acordar. A cabeça tonta, não estava ali. Calor, desconforto, estava cheia.
Por que não se pode ter aquilo que se toca?
Nunca
Nada
Por quê?
Possuir verdadeiramente. Afastar a solidão, criar qualquer ponte, contato, unidade, não?
Ela queria muito. Sabia que queria, tinha plena consciência. As coisas, as pessoas, o mundo. Desejava sofregamente. Demais. Precisava ter. Tudo. Os objetos que legitimavam uma existência pobre. As sensações que representavam o refúgio e torpor à aflição constante. A empatia morna do próximo, que transforma tudo em calor e conforto.
Exatamente como todos. Igual a qualquer um.
Ela queria
Talvez tivesse sido ensinada, talvez a necessidade fosse mesmo natural. Pouco importava. Queria satisfazer seus desejos. Buscava. Corria.
Queria tocar e tocava.
Mas o toque não lhe garantia a posse.
Tudo lhe fugia. Era como se os sonhos fossem contaminados, como se a ponta de seus dedos os fizessem degenerar.
Ansiava com toda força, paixão e medo que tinha dentro de si. Todo o seu ser concentrava-se em alcançar, qualquer coisa.
Depois da luta, era como se o céu azul e límpido desabasse em tempestade.
Seu toque fazia tudo apodrecer.
Vírus
Desmoronamento
O trabalho, os filhos, o ex-marido, sua vida. Nada. Estava ainda de olhos fechados. As coisas apodreciam a sua volta. Nada lhe pertencia. Tudo lhe era estranho. Ela não podia sentir nada além de si própria e, ainda assim, mal reconhecia sua própria vida
A essência das coisas não se alcança
Ruído
Interferência
Nada. Não se possui nada. Nunca. As coisas não se traduzem. Tudo é fora e longe e lá e ex. Sempre.
Não tinha nada do que queria, apesar de querer demais.
Ela não tinha a posse.
não
não
não
Rolava na cama. Olhos fechados, lençóis desgrenhados. Claridade. Calor, desconforto, estava cheia. Cheia do grande nada.
Lembrou-se dele, das duas crianças lindas que lhe dera, da vida perfeita.
Lembrou-se das noites de choro. Lembrou-se da sensação de falar e não ser ouvida, de ouvir sem conseguir entender. Lembrou-se das malas junto à porta. Teve novamente em sua mente a visão dele virando as costas e saindo. Chorou.
Ela não tinha nada. Nada cabe em nossas posses.
Pensou nas crianças que dormiam no quarto ao lado do seu. Lindos. Estavam crescendo. Não eram dela. Ela também não os possuía de forma alguma.
Não se possui nada. Nada cabe em nossas posses.
As coisas são, independentemente de nós. O universo não nos deve nada. Nada nos pertence. As coisas são. Nunca tocaremos o âmago. Não há elo.
Ela abriu os olhos. Levantou-se da cama. Enfrentou a claridade e foi a te a janela. Abriu-a rapidamente. Contemplou a cidade cinza. Suspirou profundamente aquele suspiro de sua alma. Estava pronta para começar o dia.

8 de fev. de 2008

Escuridão


Madrugada, a mais escura e impenetrável das noites. Fazia muito frio. Uma neblina espessa e opaca invadia todo o espaço. A luz fina que vinha do céu era coberta pelas nuvens carregadas.
Ele estava só. Caminhava pela noite fria. Era sempre assim. Seu caminho era sempre solitário. Andava sem rumo. O destino não lhe importava mais, sabia apenas que precisava continuar.
Nenhuma direção estava certa, nenhum dos caminhos era conhecido. Era impossível ver qualquer coisa naquela noite. Ele continuava a seguir. Não interessava aonde iria, só queria chegar ao fim.
A neblina úmida e pastosa só aumentava o frio que estava sentindo. Pensava estar em uma espécie de limbo. Apenas os arranhões que o contato com a vegetação lhe causava, faziam-no lembrar-se de que ainda estava vivo.
Os primeiros sinais de cansaço se fizeram notar. Ele parou ofegante agarrado a algo que parecia ser um galho. Os pensamentos que giravam em sua cabeça perturbada rodavam e embaralhavam-se.
Ele se lembrava de coisas, lugares, rostos, sons. Lembrava-se de um passado que queria esquecer. Sentia a dor seca e profunda do passado que voltava à tona. Fechou sofregamente os olhos, como que para espantar seus fantasmas. Abriu-os novamente, assustado. Continuou a andar.
Ele se recusava a fazer as velhas perguntas. Sabia que não haveriam respostas. Ele queria apenas chegar ao fim. Sentia-se sugado para dentro daquela madrugada sombria e sem sentido. Tinha certeza de estar sozinho, mas ouvia sons. Eram agudos e irritantes, invadiam seus ouvidos. Estava certo de que os ouvia. Sons que só podem ser produzidos por pessoas. Mas, ali não haviam pessoas. Ele tremeu.
O que estava a ouvir eram risadas, gargalhadas de um escárnio infernal, dirigidas a ele.
Os sons multiplicavam-se inexplicavelmente. Era como se uma multidão estivesse a sua volta. Uma multidão de malditos. Riam cada vez mais alto. Era um riso sarcástico e cruel.
Sentia a multidão cada vez mais próxima de si. Por vezes, os sons pareciam mesmo estar já dentro de sua cabeça. Ele teve medo. O terror das gargalhadas paralisara-o. Estava perdido. Mas ele não podia parar. Algo mais forte que ele o impelia para frente. Precisava chegar ao fim.
Acelerou o ritmo, estava quase correndo. Sentia-se exausto. A cada passo seu as gargalhadas pareciam aumentar. Estavam por todos os lados. A escuridão não permitia que enxergasse sequer um palmo a sua frente, mas ele sabia que a multidão apontava seus dedos funestos em sua direção. Aquela risada maldita era insuportável.
Ele caiu, novos ferimentos surgiram. Ele não podia parar agora. Levantou-se, correu. As gargalhadas o perseguiam. Não havia como fugir. Estava perdido.
A noite estava muito escura. A madrugada era muito fia. A neblina úmida era muito espessa. Não havia caminhos. Não havia mais nada a fazer. Ele estava exausto, não restava mais força alguma em seu corpo. Já não podia agüentar aqueles sons amaldiçoados. Decidiu entregar-se à multidão maldita.Ele parou, abriu seus braços e lançou um olhar suplicante na direção do céu negro. A multidão o alcançou. As gargalhadas se tornaram ensurdecedoras. Ele estava perdido. A dor mas profunda e lancinante apossou-se dele. Foi preciso apenas alguns segundos para que a multidão o devorasse.As gargalhadas cessaram. A noite escura e fria retornou ao seu silencia de morte. Ele, finalmente, conseguiu encontra seu fim.