13 de nov. de 2007

Obsoleto




Ele vivia em uma casa com quintal. Ele ainda sabia como subir em uma árvore. Ele também se lembrava de como é ficar deitado na grama. As roupas que ele usava haviam sido compradas há, pelo menos, 2 anos. Nenhum dos discos que ele ouvia tinha sido gravado a menos de quinze anos. Os livros que ele lia foram escritos há dois séculos atrás. Ele não sabia qual tinha sido o final da novela. Ele não viu aquele filme que todo mundo comentava. Ele não tinha idéia de como se comportar em uma balada. Ele não entendia como todo mundo conseguia ser tão parecido. Ele não sabia como pegar alguém. Ele gostava de abraçar as pessoas. Ele ainda guardava o travesseiro que usava quando era criança. Ele tinha contato com amigos de infância. Ele sabia o nome de todas as garotas que o haviam beijado durante sua vida. Ele não tinha amigos virtuais. Ele nunca precisou de uma câmera digital. Ele não se dava bem com celulares. Ele tinha vergonha de não dizer “oi”. Ele não gostava de pessoas que esquecem logo. Ele não gostava de coisas que passam logo. Ele não gostava de coisas instantâneas. Tudo o que fica pronto em menos de 3 minutos o incomodava. Ele não sabia ser rápido, tinha problemas com a eficiência. Ele não queria ter pressa. Ele precisava de calma. Ele só queria um pouco mais. Ele não se acostumava a ser descartável. Ele não achava que a vida devia ser assim. Ele era obsoleto. Um homem póstumo ao contrário.

28 de out. de 2007

O que é isso?

As paredes da sala eram de madeira. O teto da sala começava a meia altura, triangular. O sofá da sala era grande e macio. A sala era marrom ou ocre acastanhado ou só um bege terroso pardacento. A sala era aconchegante, ampla. A sala era ótima.
Eu estava lá
Estávamos
Eu e minha garrafa. Vinho tinto, barato e ruim. Ruim, mas ótimo. Nada melhor existia para horas como aquelas. Aquelas horas, aliás, já deviam ser mais de 3 da manhã. Eu bebia.
O jeito era beber.
Só bebendo é que se entende realmente as coisas. Eu queria entender e ninguém compreende mais as coisas que um bêbado.
Todas aquelas histórias, todas aquelas receitas, todos aqueles conselhos de sensatez empedrada, tudo era lixo. Lixo! Tudo aquilo tinha de ser jogado longe!
A vida. Ah... a vida!
Que merda de vida é essa?
Que porra é essa de alma tranqüila e de paz e de certeza e de contentamento e de tudo bem?
Tudo bem aonde?
Com quem, tudo bem?
As coisas são tão melhores quando está calor e o sol brilha. Tão melhores quando se pode andar por ai e a claridade inunda tudo ao redor e só o que se vê é amparo e acolhida. Tão melhores.
Mas aqui? Xiiiiiiiii
Aqui só há frio e cinza, mofo, umidade e pesar de coisas amaldiçoadas. Aqui não há claridade. Aqui nada se move. Aqui tudo é acinzentadamente pesado.
E o que importa isso, mesmo?
Nada.
O que importa isso de ser e de estar longe?
Isso de ficar ali consigo mesmo, de estar sempre presente a todas as desventuras, de não poder ir embora, de obrigar-se a tudo e a todos com a mesma parcimônia e solicitude, de estar sempre com a mesma cara, o mesmo corpo, isso de ser a si mesmo e de a si só se pertencer. Isso de ser o tempo inteiro é uma merda!
Não há descanso, pausa, on/off. Não há trégua.
Eu to cansado
Só umas fériazinhas, será que não dá?
Será?
Porque a gente nunca entende nada? O que será que é possível afinal? O que pode e o que não pode, enfim? Limites, quais?
Olha lá!
Cadê, onde, quando, como?
Isso de não ser possível ver um palmo a frente dos olhos, como é?
Querer ver e não poder
Que droga é essa de não se saber nada? Como é possível isso? Além de tudo, isso... isso... de ser ignorante e prepotente e sujo e magnanimamente absurdo? Como é?
Acho que preciso de mais um pouco
Porra!
Aquele buraco de novo. Sempre o buraco. Sempre no mesmo lugar. Sempre essa sensação de nada e de coisa alguma. Essa maldita sensação de que ainda não é o bastante tudo o que houve e de que tudo só está no começo e de que não importa o que se faça tudo será sempre assim.
Tudo será sempre assim?
Do que eu estou falando?
Que dor? Que angustia? Que porra?
Isso lá é coisa que se diga? Logo eu!
O que é que tenho eu pra falar dessas coisas? O que sou eu do alto dessa grande insignificância pra achar que já sofri um grão sequer do que há pra ser sofrido nesse mundo?
Hahaha
Nada! Tu não sabes de nada, ó, meu caro!
Tornas a beber e cala!
Calar
Será o melhor a fazer?
O melhor
O que é melhor?
Querer o melhor, ser o melhor, ter o melhor?
O que?
Isso de ser
De não estar satisfeito nunca. De saber-se possível e não conseguir realizar. De ver-se do modo como ninguém mais é capaz ou simplesmente não tem ânimo para. De querer alcançar e ter braços curtos de mais. De querer ver e ter olhos pontudos de mais. De querer, talvez, simplesmente.
Essa coisa de doer aqui dentro, será que um dia passa?
A sala era ótima. As paredes da sala eram de madeira. A sala era aconchegante, ampla.
O teto da sala começava a meia altura, triangular. A sala era marrom ou ocre acastanhado ou só um bege terroso pardacento. O sofá da sala era grande e macio.
Eu ainda estava lá

22 de out. de 2007

Outro





As vezes eu queria sair de mim e entrar no outro completamente.
Fazer-me entender cristal, limpidez, claridade e plenitude.
Comunicação sem ruídos.
Compreensão aberta, absoluta. Total.
Há em mim a consciência do outro. Há a presença do outro, a atração gravitacional que ele exerce. Mas não há, lampejante que seja, a sua compreensão.
Não sei nada de qualquer outro. Tudo o que sei é de mim mesmo.
Ainda assim, eu quero o outro. Desejo alcançá-lo, quero que seja tocado pelo que está fora dele e dentro de mim. Entender e ser entendido, sem interferências. Transmitir o que se pensapassa por aqui.
Preciso loucamente. Necessito insólita e insoluvelmente da compreensão profunda e extraordinária. Quero estar no outro assim como quero que ele esteja em mim. Quero saber. Quero conhecer todos os segredos detalhados e subjacentes. Quero transparências e reflexos, planície e literalidade, sem floreios ou ornatos. Quero ser claro.
Sair de mim e entrar no outro. Saber o outro como me sei e, sabendo, convencer-me de que não o sou. Atingir e ser atingido. Quero levar algo mais do que a simples lembrança vaga. Quero conhecê-lo. Quero compreender, sem meias palavras, sem arestas, sem dúvidas.
O que é isso de ser uma ilha?
Acabar onde acaba a pele. Cercado de tudo sem que se possa razoavelmente ter contato. A vida toda passando diante dos olhos e nada.
Não fica nada? Não resta nada de tudo o que houve?
Não é possível que seja só isso. Não é possível que seja tão pouco.
Quero saber de tudo o que não me é dado. Eu quero entender. Quero compreender o que não cabe em mim. O que esta fora de mim. Quero trazê-lo para dentro, metabolizar e incorporá-lo.
Eu quero o outro tanto quanto a mim mesmo.
Quero sabê-lo como ele mesmo se sabe e assim como quero que me saiba também. Sem equívocos.
È preciso a plena comunicação. A total intelecção do que é distante e do que está fora. É preciso a verdade transparenciosa do pensamento, sem manipulações. O pensamento limpidamente bruto.
É preciso a rigorosa assimilação, a verdadeira abrangência, a superior percepção. È preciso o outro que não se contêm e nem será contido, mas que se faz possível de compreender.
É preciso entender antes que seja tarde, antes que o tempo se torne pesado e que já não haja mais oportunidade. É preciso agora mais do que nunca. É preciso.
Comunicação sem ruídos. Mensagem direta e clara.
Quero comigo o que está fora de mim.
Saber de tudo o que não me é dado.
Eu quero compreender.

8 de out. de 2007

Era uma vez...



Haviam acabado de se conhecer. Ela 21, ele 23. Saiam de uma festa. Era por volta de meia noite, sábado já. Aquele desejo curiosidade suspiro era reciprocamente experimentado. Enamorescência súbita. O todo sentido quem vem de repente.

- Olha o céu. Está tão bonito hoje, né?
- É. Escuro. Muitas estrelas... e essa lua.
- A lua é tão bonita.

Apesar de nunca terem se visto antes a sensação do aconchego íntimo dos velhos amigos estava em ambos, desde o primeiro olhar.
A volta pra casa sem nunca ter saído. A casa que nunca tinha sido visitada e assim mesmo era tão conhecida. O lugar seguro. A casa de dentro. Desde o primeiro olhar.
O mágico primeiro olhar.
[Tudo no mundo parou, menos ela. O deixar-se ver propositado. Sorrisos, “ois” ao léu. Ela caminhava leve a cumprimentar as pessoas. Cabelos castanhos, rosto fino, corpo magro. Pés, pernas, mãos, braços, seios, tronco, cintura, tudo em um piscar de olhos. Era linda.
Um instante e tudo muda. Ele soube, assim que seus olhos resvalaram nos dela.]

- Vem comigo?
- Pra onde? Já está tarde.
- Vem comigo?
- Vou.

Ele era objetivo. Ela queria ser seduzida. Ele tinha medo de sofrer outra vez. Ela queria se divertir outra vez.
O clima da noite era úmido e fresco, agradável. As ruas vazias banhadas de lua, o vento fraco, as luzes dos postes. Tudo era tranqüilo. Tudo era como tinha de ser. Os dois.

- As vezes não queria ser tão extrovertida... Social demais. Acho ruim.
- As vezes tudo o que eu queria era ser extrovertido.

Divertiram-se muito durante a festa. Ela não bebia. Ele bebeu como sempre. Ela era eficazmente comedida, olhares esguios e movimentos precisos. Ele era todo certeza, firme e doce. A noite estava perfeita.

- A sua voz é linda. Adoro o jeito como você articula as palavras.
- Nada... Você que é muito gentil.
- Também adoro quando você finge que não sabe que eu estou te olhando.
- [Sorriso] Adoro quando você me olha.

A aproximação deu-se naturalmente. As apresentações foram só formalidades. Já sabiam um do outro, já estavam um no outro. Transcendência abrupta, carne, expectativa, transe. Por toda a vida, a busca é sempre a mesma.

- Por que você demorou tanto?
- Não sei, acho que estava te procurando por ai, mas não conseguia achar.
- Pois é, também te procurei muito... Ainda bem que nos encontramos.

O encontro inesperado daquilo que mais se espera as vezes pode acontecer tão calmo, tão certo. Mesmo quando não se sabe exatamente o que fazer, está tudo lá. Não como um déjà vu. Mas como uma novidade conhecida, vivida antes só em sonho e agora real. O estranho bom de estar vivo.
Viva afeição que nos impele. Os dois diferentes que se tornam mais próximos. Que escolhem se tornar, que querem, que desejam, sem mais.
Inexplicável e mais que compreensível.
Era como tinha de ser.

- Vem comigo?
- Vou.

Pra onde for.

Sem mais.

1 de out. de 2007

O Inimigo


psicotrópico
adj. e s. m.,
substância ou designativo da substância que atua quimicamente sobre o psiquismo (tranquilizantes, estimulantes, etc. ).

Não há droga mais forte que a realidade.

Droga é algo externo ao individuo que, quando em contato com ele, modifica o modo como seu cérebro reage aos estímulos. Estamos imersos na realidade, qualquer modificação do meio implica uma mudança interna do indivíduo que recebe o estímulo. Se a realidade muda, nós mudamos ao mesmo tempo com ela. Não há droga mais forte que a realidade. Não há essência. Nada é por natureza. Não há natureza. Não há definições intrínsecas. As qualidades vêm de fora para dentro, são dadas pelo que observa. O Noumenon na verdade é só mais um Phainomenon. Só o que se pensa existe, e existe apenas do modo como é pensado. Assim como nós nos amoldamos à realidade, ela é para nós exatamente como a vemos. Se você por acaso acha que está louco: sim, você está começando a ir pelo caminho certo.
Pense em algo. Esse algo é inteiramente como você o pensou. As possibilidades vão até onde sua mente é capaz de ir. Não há droga mais forte que a realidade. O tempo é nada. Tudo muda incessantemente. Tudo o que é absoluto pertence à patologia. Tudo o que é estático é patológico. Aceite as amarras e morra. Seja um inimigo e viva. Se tudo a sua volta é degenerescência, se as miríades maravilhosas não passam de lixo, se os idiotas é que te controlam... A culpa é sua! A escolha é sua. [Eu sou um inimigo] A realidade é como você vê. Renda-se ao mal-estar do fora-de-foco. Em um mundo implacável, os inimigos seguirão sempre sozinhos. Essa é nossa pena. Nada importa. Não há droga mais forte que a realidade.
Enquanto isso, a turba vociferante grita. Consuma, conforme-se.
[A escolha é sempre sua]
Inimigos da realidade, uni-vos!

19 de set. de 2007

Disfarce

Sexta-feira, dezenove horas e vinte e três minutos. Ela sabia que o telefone não iria tocar. Mesmo assim, estava ali sentada ao seu lado, esperando. O cigarro que fumava estava na metade, era o terceiro. As tragadas cada vez mais profundas. Ver a fumaça subir espiralada a acalmava. Aumentou o volume do som. Nobody said it was easy. Adorava aquela música. No one ever said it would be this hard.
[Duas batidas com o cigarro na borda do cinzeiro. Cinzas caindo.] Outra tragada. Ela gostava do cigarro entre seus dedos. Queria os olhares voltados para si quando fazia isso. Gostava de olhares, daqueles principalmente. O telefone não tocava. Não iria tocar. Mas ela continuava ali.
O sofá preto, a pequena mesa, os livros. Enquanto corria a mão suavemente sobre seus próprios cabelos ela devaneava. Queria sair, ver o mundo, ir para qualquer lugar novo e excitante. Para longe. Fugir do vazio que escondia dentro. O telefone não tocava. Ele parecia ser tão diferente. Era seguro. O único capaz ainda de lançá-la ao abismo e, em um piscar de olhos, salvá-la apenas estendendo-lhe a mão.
Ela definitivamente era uma femme comme il fault, porém, frágil. Concentrava a segurança daqueles que sabem encenar bem a si mesmos com o profundo desamparo de quem se vê desprotegida. O papel exigia destreza e habilidade. Ela parecia saber fazer leve o peso de sua personagem. [Duas batidas na borda do cinzeiro. Fumaça espiralada subindo.] O telefone não tocava.
Ela sabia o que queria. Sabia o que fazer para conseguir e, normalmente, conseguia. Mas não hoje, não com ele. Não tinha problemas em atingir objetivos, tinha apenas em defini-los. Estava sozinha e isso a incomodava muito. A falta de espectadores lhe obrigava a ver a si mesma. Ela queria alguém. Precisava de alguém, só para não ouvir seus próprios ecos. Era frágil. E, por isso, prepotente. Estava sempre certa, mesmo quando errada.
Ela tinha planejado tudo. Queria vê-lo, senti-lo. Porque o maldito telefone não tocava? Lembrou-se da última conversa. Lembrou-se de como se divertiam juntos. Ela sentiu vontade de chorar. Nada fazia sentido. O vazio de dentro aumentava. Acendeu outro cigarro. [Fumaça espiralada.] Tentou esquecer. Tentou lembrar-se de outra coisa.
O telefone? Será?
Não era nada além de sua própria imaginação. Ela era frágil. Queria alguém que lhe protegesse. Mas acabava afastando qualquer um que chegasse muito perto. Não queria sofrer, por isso, sofria. Estava sozinha. Não sabia viver assim. No one ever said it would be this hard.
Gostava de parecer forte. Gostava de ser vista assim, esforçava-se para isso. Esse era seu disfarce. Parecer. Queria ser vista, mas nunca se mostrava. Não conseguia. Só o que tinha fora estava preparado, o interior não. Nem ela sabia o que escondia dentro. Sabia apenas que não era para ser exposto. Tinha medo, muito medo. Era frágil. Defendia a si mesma se escondendo. O telefone não iria tocar.
Não conseguiu conter as lágrimas.
Porque as coisas eram como eram? Porque tudo aquilo? Por quê?
Não sabia as respostas. Ninguém saberia. Chorava. Não por causa do telefone que não tocava, nem por causa do que não ligava. Chorava por si mesma. Por tudo o que não era. Por tudo o que queria. Chorava apenas. Ela que nunca mostrava qualquer fraqueza, mas era frágil, chorava.
[Fumaça. Cinzas. Tragada funda.] A maquiagem borrada. Pequenas lágrimas sobre a roupa cara. Seu cabelo agora deveria estar horrível. Ela era só uma menina. Tinha medo. Tinha sonhos. Chorava apenas. Não queria lembrar-se de que ainda estava ali. Sozinha. Não queria lembrar-se de nada. Queria esquecê-lo apenas. Arrancá-lo de si. Queria colocar tudo o que estava lá dentro para fora. Fugir. Adormecer. Queria que tudo parasse, voltar no tempo e fazer tudo diferente.
Queria ser forte.
O seu choro continuou ainda por muito tempo. Ela estava sozinha. Ela sempre estaria sozinha. O seu personagem não servia mais. O medo nervoso que tinha da dor a aproximava ainda mais dela. Sentiu o desespero de quem começa a ver a si próprio sem mistificação. Deu a última tragada. Afundou o cigarro no cinzeiro. Não havia mais a fumaça espiralada. O telefone tocou.

14 de set. de 2007

Ces't la vie (2.0)

Não, eu não quero acordar.
Há pelo menos uma hora estou rolando na cama. Os raios de sol que a muito já conquistaram a janela penetram por cada fresta. A velha porta não é suficiente para conter os ruídos que invadem o quarto.
Eu não quero acordar!
Acordar pra quê? É só mais um dia. Nada a fazer. Não há novidade nenhuma (nunca há...). Só aquela sensação horrível, bem ali um pouco acima do estômago. Aquele velho buraco negro me sugando pra dentro de mim mesmo (como eu odeio isso!). Tudo é quase sempre igual. Os dias só diferem pela intensidade da melancolia. De resto, é só ser arrastado pelas horas, vendo as mesmas coisas passarem e depois, ir dormir novamente.
O sono é um alivio.
Mas acordar é um martírio.
Sinceramente, acho que hoje não vou sair da cama.
Talvez, se eu tiver sorte, ninguém sinta minha falta e nenhum estraga-prazer venha aqui me chamar. Ah, seria ótimo. Eu teria paz, enfim. Não fossem esses barulhos e essa maldita cabeça que não pára. [As vezes eu odeio pensar!] Preciso ir ao banheiro. Deve estar frio lá fora. Aqui esta tão quentinho. Definitivamente nada vai me tirar da cama hoje.
A pouca luz que entra produz sombras interessantes nos objetos.
Fecho os olhos.
Eu me lembro do rosto dela, não há um dia sequer em que eu não pense nela. Maldita! Será que ela também se lembra de mim?
Viro-me novamente (isso já esta ficando cansativo...).
Se por acaso eu resolver levantar daqui, vou ter de sair pra algum lugar. Hoje não vou ficar em casa. Mas pra onde? Com quem? Pra quê? Se ao menos eu tivesse planejado algo... Que chatice! Quero voltar a dormir! Que horas deve ser agora? Ontem me deitei tarde. O que será que eu sonhei ontem mesmo? Dizem que todo mundo sempre sonha. É estranho, mas nunca consigo me lembrar dos meus sonhos.
Será que a vida de todo mundo é monótona assim ou eu é que sou mesmo estranho?
Muito mais provável a segunda opção. Mas também não creio que esse seja um defeito assim tão grande. É melhor que ser normal (medíocre...). Só que as vezes cansa.
E pensar que já são quase vinte anos...
Já há carros passando lá fora. Arrumo o travesseiro. O teto esta precisando de uma pintura. Nada disso importa.
Queria poder voltar no tempo...
Não, melhor não. Teria de acordar de novo em todos aqueles dias que já passaram.
Uma vez só já basta.
Mas hoje não! Hoje estou de folga dessa vidinha chata.
[Se eu fosse Dews teria tirado dois dias parar descansar, não me contentaria só com o sétimo, mas (principalmente...) teria usado o sexto dia inteirinho só pra dormir, sem fazer absolutamente mais nada]
Se continuar desse jeito, talvez um dia alguém resolva fazer um livro sobre mim, afinal, ao menos a filosofia de herói de nossa gente eu já tenho.
Ai, que preguiça.
Aquela música começou de novo: all we are sayiiiiing, is give peace a chaaance... O John detonava. Mas bem que ele podia me deixar dormir agora.
Ah, que droga! Cansei-me disso tudo. Esses malditos passarinhos, essa maldita luz, essa maldita cama! Eu to com fome, quero comer, quero mijar... Já chega! Não agüento mais!
Ao que tudo indica fui vencido novamente.
Só me resta entregar os pontos.
Mais um dia.
Fazer o quê?

Espero que tenha sobrado café...
[Recauchutado de 10/07/2004]

10 de set. de 2007

Fiat Lux


Primeiro não há nada. É só a plena vaziez, a suspensão do tempo, coisa alguma em lugar nenhum. Depois, de repente, quando menos se espera, você está ai, vivo. Ploft. Assim, sem mais nem menos. Sem a menor explicação. Um belo dia você acorda do sono que nunca houve e se dá conta de si mesmo. Bang! Você se percebe, se vê, sendo. Em um instante não há coisa alguma, no seguinte, esta tudo ali bem na sua frente. Tudo. As pessoas coisas cores gostos sons. Everything. Ali, ao mesmo tempo, junto, sofregamente disputando a sua atenção, te virando de cabeça pra baixo e dando palmadas na sua bunda. A vida é estranha, muito estranha. O mais estranho é que você está sempre ai. A partir daquele primeiro instante da descoberta, do cair em si, torna-se impossível desligar-se. Mesmo que tudo passe [e tudo irá passar], você continua ai. Tu não te moves de ti. Nunca. O fluxo profuso e ininterrupto de manifestações sinápticas sempre está conosco, aonde quer que formos. Mesmo que você não consiga se achar dentro de seu próprio corpo, sempre se reconhecerá dentro de sua própria cabeça. Ninguém consegue ver a si próprio de costas enquanto anda, no entanto, todos somos capazes do auto-reconhecimento imediato. A contar da eclosão do “eu” você é você, e pronto. Uma nebulosa fervente, um pequeno universo de “vocês” dentro de um único “eu”. As possibilidades infinitas do não-deixado. Escolhas. Há sempre uma escolha. As alternativas nunca são as que queremos, mas a escolha é sempre nossa. [Apenas nossa]. Todas as lastimosas realidades que não foram. As imetabolizáveis exeqüibilidades sonhadas e não vividas. As chagas de nossa própria autoria. É disso que se constitui cada “você” desse nosso múltiplo “eu”. Potencialidades apenas. È a partir dessa soma de possíveis vivências que aprendemos a ser o que somos. A personalidade não é inata, é aprendida, por tentativa e erro. Pelo sim e pelo não. Nossas escolhas nos produzem, e nós a elas, simultaneamente. Nessa redondeza vaga é que nos criamos. O escolhido e o recusado, a distância entre o traçado e o seguido, o vivido real ou imaginariamente, se juntam, se aglutinam e desembocam no “eu”. O processo é imperceptível, silencioso, natural. Quando nos damos conta ele já está. A primeira peça já caiu a tempos e os dominós só continuam seu trajeto. Somos por inércia. Tudo o que escolhemos ser. Assim, e pronto. Mas, será que há consciência disso?
A vida é estranha, muito estranha.

5 de set. de 2007

Melífluo Vermelho

Sua pele era tão branca, tão macia, tão doce. Tê-la em minhas mãos era a suprema recompensa. Ela era minha, toda minha. Estava pálida, quente ainda. Seus longos cabelos negros a deixavam com um ar assustador, tão assustador quanto tudo o que é verdadeiramente belo. A pele branca e luzidia. Ela era de uma alvura ofuscante. A visão do contraste entre a doçura gelada de sua pele e o vermelho-vivo das primeiras gotas foi qualquer coisa de sublime. Seus olhos azuis ainda estavam fixos nos meus. Eram olhos tão profundos. Eu os temia tanto, os queria tanto. Estavam ainda a me desafiar.
Ela era linda. Ela era minha.
Penetrei-a devagar. Cada suspiro seu me fazia querê-la mais. Ela lutava contra mim aquela luta inútil. Não poderia nunca sair dali. Não havia como escapar. Era minha. Fechou os olhos, sua respiração taquicárdica mal me deixava ouvir o que se passava dentro de minha própria cabeça. Enfiei mais forte. Ela gritou um grito seco. O grito do meu prazer.
Sua carne era realmente macia. Seu sangue me hipnotizava. Tão belo, melífluo vermelho, muito vermelho, o mais diabólico vermelho jamais visto. Tinha a textura grossa de cada gota viva ainda pulsante. Eu estava louco. As gotas escorriam sobre seu colo. A brancura angelical invadida pelo rubro quente infernal. Aquele vermelho grosso, suculento. O vermelho da morte.
A faca deslizava por sua pele. A lamina fora cuidadosamente afiada. Devotadamente preparada para partir a carne da deusa de gelo. Tão macia, tão branca, tão minha. Encostei meus lábios sobre os seus. Ela moveu-se lentamente, tanto quanto podia mover-se naquela posição. Eu a beijei. Beijei sua boca como a nenhuma outra havia feito. Ela era minha. Seus lábios, vermelhos também. Sua saliva, a língua, os dentes [brancos]. Ela era linda.
A lâmina de aço brilhante, fria, rígida, guiada por minhas mãos, era implacável. A única capaz de galgar a superior intangibilidade daquele ser angélico. Os primeiros golpes foram os mais difíceis. Os olhos azuis, a suplicante altivez de seu rosto santo. Confesso que por um instante renitente a idéia de libertá-la me ocorreu. Mas eu não podia, aquilo tinha de ser feito. O sacrifício da deusa era necessário. A sua beleza tanta não pertencia a esse mundo. Não. O vazio asqueroso, o império maldito, esse imundo era uma ofensa à minha adorada. Eu lhe devia a liberdade.
Cortei-a mais uma vez. O vermelho inundou seu seio. Era uma figura angelical, sobre-humana. Tinha a brancura dos olhos de Dews. Era tão viva ainda. Toquei-lhe levemente com a língua. Sua pele, a sublime, a inefável, a majestosa. Seu sangue, o doce, esplêndido, inebriante. A vitória, eu a tinha, finalmente. Era minha, toda minha.
Aquele corpo exprimia em si o indizível. Era a perfeição feita carne, era a beleza feita gente. Estava em minhas mãos. Eu a admirava. Ela era tudo o que eu desejava. Antes de mais um golpe tomei-a novamente. O colo liso, branco, banhado, minha mão a percorrê-lo. Eu a acariciava admirado. Aproveitava a trégua do tempo, os longos instantes da suma maravilha.
Aquele momento já estava em mim desde muito antes. Eu sabia, sabia que ela me daria a mais profunda das alegrias. O mais intenso dos sabores. O sangue, a branca carne dilacerada, a inconcebível perfeição da dor. Era linda. Era tudo o que eu jamais pensei existir. Eu a amava, por sua beleza, por sua doçura, pela lânguida perfeição de suas formas esfaceladas.
A faca perfurou-a novamente, já não podia controlar, estava muito além do meu próprio arbítrio. Era como se a força suprema do desejo da carne se abatesse sobre mim, e eu sobre ela. A frágil, a sublime, a encantadora, majestosa deusa gelada. Não suspirava mais, não se movia mais, não arfava mais o corpo a cada minha investida. Não mais. Estava quieta, de uma quietude flácida e pacifica. Assim era ainda mais majestosa. Linda. A suprema recompensa.
Baixei a lamina, coloquei-a de lado, longe. Havia muito sangue, estava espalhado por todos os lados, banhava a mim e a ela abundantemente. Minhas mãos tremiam, meus olhos estavam cansados do espetáculo, meu corpo não podia mais agüentar. Beijei a face de minha deusa adorada. Deitei-me a seu lado, colei meu corpo no seu pela última vez. Senti sua presença em mim como se fossemos apenas um. Toda existência deve ter um momento de glória. Esta era minha glória, a suprema recompensa. Era linda. Era minha. Estava morta.

1 de set. de 2007

Derrelição


Eterno infinito imutável imaterial.
Nós O sabemos definir tão bem. Perdemos tanto tempo com isso. Pensa-se tanto no Outro e acaba-se esquecendo de si mesmo. Porque não nos definimos a nós?
Nós?
O que somos nós?
Etéreos não-eternos, eternamente incompletos. Passageiros. Perdidos em busca de qualquer coisa. Coisa alguma que muda a cada instante.
Nós que somos sobre tudo matéria. Temos dificuldades profundas com o abstrato. Os sentidos (esses nossos parcos sentidos...) é que nos guiam.
Precisamos da matéria. Queremos sempre ter as mãos cheias dela. Tocar fundo com a ponta macia dos dedos o âmago da matéria. A úmida esponjosa, essa suculenta carne jovem. A matéria.
Sedutora. Hergonômica, táctil. Sensual pela própria definição. A matéria que nos rodeia, que nos envolve, que nos abraça forte, é finita. Acaba.
A matéria se desfaz.
O que nos é dado conhecer (o vasto vazio mundo da matéria), está vinculado a termo.
Apodrece.
Todos conhecemos a podridão.
Todos pressentimos os vermes famintos. E, não.
Não é apenas isso.[?] Não aceitamos que seja.
A centelha do infinito não nos permite aceitar.
A centelha do infinito[!]. O imaterial. A dúvida. A intuição da não-matéria. A sobre-matéria. O talvez. O sempre. O será?.
A presente intuição da não-substância original. O desejo do retorno. A ânsia pela liberdade. O desconforto do not belonging. O deslocamento. A distopia.
A intuição do infinito parece ser a explicação.
[O meu reino não é deste mundo]
O vazio.
O desespero.
Há entre nós a premonição da natureza abstrata da não-matéria. Há a intuição do eterno imutável. Não é possível negar.
Mas, acima de tudo, há a contingência da matéria.
A sedutora, velha amiga, aconchegante como sexo de moça nova. Armadilha. Jaula. A matéria que não nos deixa escapar.
A contingência e o desejo de liberdade se digladiam o tempo inteiro em nosso corpo.
A disputa é intensa.
A matéria contra seu inverso negativo. A matéria disforme, uniformemente asquerosa X A abstração absoluta, o sublime.
Esse é um de nossos mais fortes nós.
A carcaça pressente o sublime e, mais que isso, quer ser o sublime. E, não.
Não.
Carcaças são só carcaças.
A matéria cadáver adiado sempre vence.
Sempre. A todos nós. [?]
E, enquanto esperamos a liberdade, permanece o abandono. O desamparo. A vida que não tem cura.
A intuição do eterno imutável não resolve o problema. Pelo contrário, acentua o problema.
Por quê?
Porque intuir não é saber.
A intuição é abstrata e, como sabemos, não somos muito afeitos a abstrações.
A sapiência é concreta. Precisa ser concreta, surge de fatos.
Só é possível a cognição exauriente de fatos.
Fatos pressupõem matéria.
E a matéria destina-se à putrefação, mesmo que postergada.
A intuição, essa intuição, presta-se mais ao desserviço.
Mas, nada é por acaso.
ELE sabe muito bem o que faz.
É exatamente isso o que quer fazer.
A derrelição é proposital.
Se pudesse apostar, apostaria que ELE nos assiste e ri.
Ri-se muito, de fato.
Enquanto isso, choramos.
Acompanhados somente de nossa companheira fiel.
A matéria.
Até que a morte nos separe.